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Omissão

Foto do escritor: Eduardo BatistaEduardo Batista

Morei num condomínio em uma cidade do interior do Rio de Janeiro. Este caso me afetou bastante e até hoje não sei exatamente o que dizer.

Uma família tinha acabado de se mudar para a casa ao lada da minha. Era um casal com dois filhos. Não eram muito de conversar. Trocávamos algumas palavras quando nos encontrávamos saindo de casa. O marido era engenheiro e a esposa professora. Eram gente boa. Apesar das poucas palavras, exalavam simpatia ao sorrir.

Contudo, a noite quando eu chegava do trabalho, costumava escutar uma gritaria. Mais de uma vez pensei em chamar a polícia ou eu mesmo bater na porta. Mais tarde, no encontro anual de condôminos que fazíamos para nos aproximar, vi os dois filhos brigando e a gritaria era a mesma. O pai logo tratou de ir apartar a confusão e mãe que estava comigo e mais três conversando disse que era sempre assim.

"Mas eles não se gostam?"

"Não! Eles se gostam e muito. Não saem sem estarem juntos ou o mais novo fica chorando ou o mais velho faz inúmeras perguntas até o irmão chegar. Ficam inquietos."

"E por que da briga?"

"Ciúmes. Querem mostrar quem manda. Vulgarmente falando, quem é o dono do território."

"Deve ser difícil mesmo, lidar todo dia com isso."

"No início até foi, mas agora a gente já sabe controlar a situação. Quem dá mais trabalho é o pequeno que sempre arranja a confusão. O outro tenta ignorar o máximo que pode."

E assim eu também fui me acostumando aos barulhos que me recebiam em casa após um longo dia de trabalho. Um ano depois, numa noite fria, ouvi batidas vindo da entrada junto a campainha. Olhei no relógio e eram três da manhã. Levantei assustado e corri para a porta. Três horas da manhã, alguém batendo desesperadamente na minha porta ou era morte ou era alguém bêbado que errara a casa.

Olhei pelo olho mágico e atendi o ser em desespero. Era a mãe com os olhos vermelhos de tanto chorar pedindo que eu os levassem ao hospital, pois o filhos mais velho estava passando mal seriamente e o carro deles estava na oficina. Como durmo de moletom nos dias frios, nem exitei. Disse para me esperar no carro que só iria pegar a carteira e as chaves.

Apesar de toda correria e agitação, acordei, de fato, quando estava na sala de espera com o caçula enquanto os pais estavam com o médico e o menino. Coitado! Várias vezes urrou de dor. Foi necessário colocar uma toalha em suas partes íntimas, pois sangrava involuntariamente. Como corri pela estrada. Acho que nunca fui tão rápido assim. As horas iam passando e a tensão só aumentava.

"Tio! Meu irmão vai ficar bem, né?"

Tive que segurar bem forte para não chorar na frente dele. Suspeitava do que seu irmão poderia ter e se estivesse certo, a resposta não seria nada confortável.

"Não sei. Vamos esperar seus pais voltarem para sabermos."

Mal terminei de falar, o pai saiu correndo de dentro do hospital. O menino tentou seguí-lo , mas o segurei e coloquei no colo.

"Ei! Eu quero ver meu pai"

"Seu pai só foi pegar um ar e já volta."

Da forma que ele saiu, sabia que o pior havia acontecido. Se não me engano, pude escutar um grito de dor ao fundo.

Fui com o garoto pra cafeteria do hospital para distraí-lo. Graças a Deus deu certo. O local estava vazio, então pedi para a atendente que colocasse no canal infantil para ele poder se distrair. Algum tempo depois o pai apareceu. Sua cara estava inchada e péssima. O filho quando o viu correu em sua direção e o abraçou. Percebi que ele tentava conter o choro, mas em intervalos algumas lágrimas caíam.

Ele se aproximou e sentou na mesa em que eu estava. Pediu um café e se largou na cadeira.

"Meu irmão tá bem?"

Demorou para que a resposta viesse.

"Não."

E foi só.

"Ei garoto! Vá até ao balcão e pede pra moça papel e lápis de cor pra você poder desenhar."

Ele abriu um sorriso e saiu com toda a sua inocência. Esperei ele chegar ao balcão e me virei para o pai.

"O que vai fazer?"

"Não sei. Ainda estou em choque."

"Se precisar de alguma ajuda, posso ligar para a babá que cuidou dos filhos da minha irmã. Ela é de confiança e ótima com essas situações."

"Não pretendo contar para ele agora. Não aguentaria. Talvez eu precise da babá mesmo. Vou voltar lá pra cima. Tem como ficar com ele mais um pouco?"

"Claro!"

"Obrigado!"

Quando ele se levantou o filho chegou com material para desenhar. O pai disse que ia ver como o irmão estava e que era para esperar mais um pouco comigo. Ele emburrou a cara, mas aceitou.

Eram quase sete horas da manhã quando os dois apareceram e pediram para irmos embora. Inventaram para o filho que o irmão precisaria ficar mais um pouco no hospital, o que ele não gostou nada de ouvir. Quando chegamos em casa, mandaram o pequeno entrar primeiro. Enquanto a mãe fazia as ligações o pai me contava o ocorrido. O menino estava com infecção renal há dias e não contou que sentia dores. Quando chegamos ao hospital ele já havia desenvolvido insuficiência renal que acumulou com uma hipotermia. Entrou em choque com o ar do hospital e veio a óbito minutos depois.

Perguntei se eles perceberam algo antes. Disse que só perceberam a febre e trataram disso. Fiquei um pouco perplexo com a situação. Como passou tão despercebido?

"Tem como ligar para babá? Vamos precisar que alguém fique com ele durante o enterro."

"Realmente não vai contar?"

"Não. Agora não."

Respeitei sua decisão e chamei a babá. Fui trabalhar e deixei toda a tristeza para trás. Quando voltei, a babá ainda estava lá. Disse que podia ir embora que eu ficaria com o menino. Antes de ir, ela disse que ele chorou algumas vezes chamando pelo irmão. Meu coração ficou apertado.

Por volta das dez da noite eles chegaram com expressões abatidas. O menino perguntou pelo irmão e eles responderam que ele teria que ficar mais uns dias no hospital. Fui embora atordoado naquele dia. A ideia de não contar à criança que não poderia mais ver o irmão era um pouco inaceitável. Tudo bem que ele era novo, mas precisava saber.

Os dias passaram assim como as semana. Não me envolvi mais com eles. Continuava cumprimentado-os , disse que se precisassem de algo era só me chamar, mas eles também preferiram ficar só no "Bom dia, boa tarde, boa noite."

Devido ao crescimento da empresa e de meu bom desempenho, fui promovido a gerente e precisei me mudar para a capital a fim de ficar mais perto da sede. Saí do interior deixando toda aquela história para trás. No dia em que terminei a mudança, vi que o caçula estava na janela me olhando. Acenei um tchau ao qual ele retribuiu. Mais uma vez me segurei para não chorar.

Os anos passaram e poucas eram as vezes que voltava à cidade. Ia mais para visitar os parentes que ainda residiam lá e mesmo assim era num curto espaço de tempo. Porém, houve uma data que precisei ficar uns dias para resolver algumas situações.

Numa tarde desses dias, resolvi ir à cafeteria que tinha o melhor café da cidade. Estava sentado em uma mesinha tomando o café e checando uns emails quando percebi uma pessoa parada na minha frente. Era um adolescente. Ele me encarava sorrindo como se tivesse encontrado uma grande resposta.

"Não me reconhece?"

"Desculpa, mas não."

"Eu era seu vizinho. No condomínio."

"Desculpe, mas não consigo lembrar."

"Você passa a madrugada inteira comigo no hospital e não se lembra de mim?"

O frio que percorreu minha espinha foi mais rápido que queda livre. Não conseguia acreditar que aquele garotinho estava na minha frente. Bom, não mais garotinho.

"Parece que viu um fantasma."

"Oi! Desculpa. Levei um tempo para processar a informação. Sente-se. Como vai?"

"Bem, obrigado. Pensei que nunca fosse te encontrar."

"E por que queria me encontrar?"

"Preciso de algumas respostas."

EITA!!!! Só de imaginar que poderia ser eu a contar que seu irmão tinha falecido, já escorria suor coluna abaixo.

"E que respostas seriam essas?"

"Sobre meu irmão."

Esse é o momento que você quer abrir uma cratera no chão e se jogar dentro. Não chega nem ser buraco.

"O que tem seu irmão?"

"Quero saber como ele morreu."

Um grande alívio tomou conta do meu peito. Acho que até dei um sorrisinho. Contudo, me dei conta que teria que contar o que aconteceu. Suor? Volta aqui só um instante, por favor.

O silêncio era profundo. Fiquei formulando como começar aquilo sem deixar as coisas mais tensas do que estavam.

"Olha! Eu preciso de respostas. Só tem um ano que descobri a morte dele e desde então tem sido bem difícil..."

"Espera! Só tem um ano que você soube da morte dele?"

"Uhum."

"Calma! Com quantos anos você está?"

"Dezesseis."

"O que seus pais te contaram?"

"Bom! Eles não contaram. Não diretamente. Enrolaram meu irmão no hospital por umas quatro semanas. Quando ele melhorou, falaram que ele tinha feito uma prova da escola com urgência e foi aceito num programa em São Paulo para estudar. Pedi que eles me levassem no tal instituto que ele estava, o que depois de muito tempo eles aceitaram. Na semana da viagem vieram com um papo de que ele fora aceito num programa de tecnologia nos Estados Unidos. Pedi várias vezes para que me deixassem falar com ele, até que um dia comecei a receber e-mails com o nome dele. Fiquei tão feliz! Finalmente estava em contato com meu irmão.Mas teve um dia que voltei mais cedo pra casa e peguei minha mãe falando com uma pessoa ao telefone dizendo que estava indo bem. Que eu estava acreditando na história. A confusão depois foi enorme. Discutia com eles todos os dias para me contarem a verdade. Já tinha passado seis anos. Queria saber por que eles escondiam meu irmão. O que tinha demais eu poder ver ou falar com ele? Percebi que todos os anos, no dia em que meu irmão tinha ido para o hospital, eles sumiam por um tempo. Nesse dia, faltei aula e os segui. Fui parar no cemitério. Esperei eles saírem e me aproximei do túmulo. Tinha a foto do meu irmão lá. Quer dizer, eu havia cogitado tal ideia, mas não queria que fosse verdade. Era doloroso demais pensar nisso. Como é agora."

Ele ficou em silêncio enquanto chorava. E eu incrédulo com o que os pais fizeram.

"E como foi depois? O que eles disseram?"

"Não contei que sabia. Provavelmente iriam mentir de novo. Mas lembrei de você. Tinha a esperança de um dia encontrá-lo e saber o que realmente aconteceu."

"Seus pais devem ter um bom motivo para..."

"Você vai mentir pra mim também?"

Sua cara era um misto de decepção e raiva. Quer saber? Desde o começo eu achava que ele devia tomar conhecimento dos fatos. Que se dane. Respirei fundo e comecei. Contei tudo o que aconteceu desde as batidas na porta até eu chegar e substituir a babá. Quando terminei, ele ainda tinha lágrimas nos olhos. Por um momento olhou pra janela e se perdeu em seus pensamentos. Acredito que ele tenha ficado satisfeito de saber o que aconteceu. Pelo menos seu "obrigado" antes de ir expressou isso.

Fiquei com medo dele fazer uma besteira, mas não podia fazer mais nada.

No dia seguinte eu fui embora. Antes de ir, comprei flores e fui ao cemitério. Estava um pouco perdido, pois não fazia ideia de como achar o túmulo. Fui andando e não muito tempo depois, vi um jovem em pé de frente para o lugar em que queria chegar. Aproximei e deixei o vaso kalanchoe perto da lápide. Fiquei alguns instantes ali, relembrando mais uma vez aquela noite.

"Eu costumo vir aqui todos os dias. Me sinto um pouco mais perto dele, mesmo que não o veja."

E pela primeira vez, deixei as lágrimas caírem na frente dele.

"Sinto muito por tê-lo perdido cedo. Apesar das brigas, vocês se amavam muito."

"A gente brigava muito mesmo. Como eu era idiota."

"Não. Você era apenas uma criança. Não tinha discernimento sobre brigar com alguém."

"Sabendo ou não, meu irmão não está mais aqui."

"Ei! Seu irmão não morreu por culpa sua. O que você fez ou deixou de fazer não importa agora. Não muda nada. Lembre dos momentos que vocês se divertiam e davam gargalhadas sem fim. Isso sim muda. A imagem que você vai ter dele."

"É."

Ele estava tão triste. Talvez demorasse anos pra superar.

"Eu preciso ir agora. Quer uma carona pra casa?"

Ele balançou a cabeça num sim enquanto enxugava o rosto na manga da blusa. O trajeto foi silencioso. Tentava achar algum assunto, mas nada. Quando chegamos ao condomínio, antes dele descer, lhe dei um conselho.

"Sente com seus pais e tente uma conversa de verdade. Não perca a calma. Mostre que podem confiar em você, ok?"

"Ok. E obrigado por tudo."

"Não há de que."

Ele desceu e fechou a porta. Esperei ele entrar pra voltar à estrada. De fato, foi a última vez que o vi. E espero, sinceramente, que tenha se acertado com os pais. Lembro que conversar determinados assuntos com os meus não era nada fácil. Com o tempo as conversas não aconteciam mais ou a gente evitava para não gerar transtornos.

Hoje em dia, os filhos se afastam dos pais e procuram respostas em outros lugares e os pais também não tentam conversar certas coisas por puro tabu. Ocorre uma omissão dos dois lados.

Quem sabe um dia nós, pais e filhos, percamos essa vergonha e sejamos mais sinceros uns com os outros?


por Eduardo L Batista

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