top of page

Os segredos estão nos dedos

Foto do escritor: Eduardo BatistaEduardo Batista

Texto inspirado na música “Falanges” da banda Quarto do L


O que poderia ser pior do que ter seu ônibus cancelado por hora indefinida? Foi o que me aconteceu naquele dia. Estava chovendo “o mundo” e tudo parou por segurança. Na rodoviária, todos se enfiaram dentro do banheiro, do espaço reservado das companhias de ônibus e onde mais houvesse para se proteger. O vendaval espalhava a água em todas as direções e suscitava medo nas pessoas. Meu destino era bem longe e estar atrasado não me deixava calmo.

Dentro da sala da companhia, um grande quadro no fundo do balcão de atendimento mostrava os ônibus com seus horários e destinos. Todos com atrasado na frente. Estava lendo meu exemplar de Clarice Lispector quando uma moça ao meu lado, vestindo um jeans surrado e uma camiseta preta, começou a reclamar no telefone.

- E você quer que eu faça o quê? A rodoviária está parada, ninguém tá andando pelas ruas. – silêncio - Mas que merda! Eu já disse que não posso fazer nada. Você que se vire com essa bosta.

E desligou o telefone. Olhei para ela no exato momento em que virou o rosto. Voltei para meu livro rapidamente, um pouco vermelho.

- Você deve me achar louca né?

- Não. Entendo sua frustração. - respondi ainda olhando para o livro.

O silêncio voltou e eu não consegui mais ler. Algo havia começado e não iria parar ali.

- É meu namorado, sabe? Ele comprou uma TV nova para poder assistir melhor o futebol dele. Nem pediu minha opinião e fez pouco caso na hora de ir comprar e agora quer que eu vá ver se aquela merda queimou.

- Vocês moram juntos? - perguntei fechando o livro com o dedo marcando a página.

- É. Um pouco estranho, não?

- Não sei. Depende. Quanto tempo de namoro tem?

- Nove meses.

- Definitivamente estranho.

- Eu pensava que era o cara, sabe? Senti tudo aquilo nos primeiros meses. Com cinco meses me mudei para o apartamento dele e então comecei realmente a conhecê-lo e não era nada do que eu imaginava. - ela se afundou um pouco mais na cadeira, abaixando os ombros.

- E por que você não termina com ele?

- Bom, acho que ainda amo ele. Um pouco, mas amo.

- Não se pode viver com uma pessoa em um mesmo aposento se a ama um pouco. Óbvio que ocorrerá inúmeros desentendimentos, mas não dá pra continuar construindo algo saudável.

Ela ficou me encarando com certo brilho no olho.

- Que lindo! Parece que ainda existem pessoas sensatas no mundo.

- Apenas tenho minha própria visão do amor, não uma fantasia formulada a partir de filmes e novelas.

- Quem dera eu pudesse dizer o mesmo. Sempre sonhei ter meu príncipe encantado igual aos contos da Disney. Aquele romance de contos de fadas em que nada dá errado.

- Mas você nunca vai achar isso. Esse tal romance em que tanto sonha é feito por você mesma. Não tão perfeito como nos filmes, mas vem de você.

- Você parece ser legal.

- Obrigado.

E mais uma vez o silêncio parou entre nós. Meu coração palpitava à medida que falava aquelas coisas para ela.

- Já brincou de “Os segredos estão nos dedos”? - ela me perguntou.

- Nunca.

- É assim. Duas pessoas encostam uma mão na outra. Quem tiver os dedos maiores é porque tem segredos maiores do que a outra.

- Nunca ouvi falar.

- É um pouco besta, mas legal. Quer tentar?

- Pode ser.

Levantei minha mão direita e ela, a dela. Juntamos nossas mãos e meus dedos ficaram dois centímetros maiores.

- Parece que você venceu.

- Ah! Mas é claro que minha mão é maior que a sua.

- Os dedos não mentem. - ela balançou a cabeça dando por vitoriosa a questão.

- Então me conte um segredo seu.

- Pra quê?

- Pra ver se meus segredos são mesmo maiores que os seus. - como eu costumava ser competitivo, não aceitaria perder num jogo bobo daqueles.

- Tá bom. Teve uma vez, eu era pequena. Estava na casa de uma amiguinha e ela tinha um batom que era maravilhoso e eu queria muito. Esperei ela se distrair com algo e no momento que pude, escondi o batom na calcinha.

Eu comecei a rir sem acreditar naquilo.

- Está rindo por quê? É sério.

- Não podia ter pedido pra sua mãe comprar?

- Eu era uma criança. Não passou nada pela minha cabeça na hora. Eu só queria o batom. Vai sua vez.

- Deixa eu ver... bom, lembro de quando eu estava na quinta série e tive que fazer uma prova de ciências. Eu não sabia nada da matéria e estava desesperado até que olhei pra frente e consegui ver a prova da menina mais inteligente da sala. Eu já estava quase chorando, então copiei a prova dela.

- Esse é o seu segredo? - ela perguntou decepcionada.

- Uhum.

- Quase todo mundo faz isso. Seja consciente ou não.

- Então quer dizer que eu ganhei. Meu segredo não é pior do que o seu.

- Claro que não. Não valeu.

- Valeu sim. - respondi a sua insatisfação.

- Vamos jogar de novo. Dessa vez a gente vai ter que contar nosso maior segredo.

- Não vou contar meu maior segredo pra uma estranha. Sem ofender, claro.

- Mas é exatamente por isso que vamos contar. Provável que nunca mais vamos nos ver. E não estou aqui pra julgar ninguém.

Admito que as palavras dela me convenceram. Pensei bem, mas por fim cedi.

- OK! Mas isso vai morrer com a gente aqui, certo?

- Certíssimo.

Puxei o ar com força, me virei para ela na cadeira e comecei a falar.

- Eu estava voltando, já de noite, da escola quando decidi cortar caminho em um bequinho que daria de frente pra minha casa. Sempre passei por ali. Mas acabei topando com um assalto. O bandido estava encurralando uma senhora na parede quando me viu. Ele apontou a arma pra mim e mandou eu ficar quieto. Em seguida me pegou a força pela camisa e me jogou contra a parede. Mandou eu entregar a carteira e o celular. Sem querer eu olhei pro lado e vi a senhorinha saindo. Ele percebeu meu olhar e também reparou e foi pra cima dela. Nesse momento eu corri o mais rápido que eu podia pra sair dali. Já estava perto de casa mesmo. Entrei todo afobado e me afundei no meu quarto atônito com a situação. Mais tarde quando meus pais chegaram eu contei o que acontecera. E foi aí que me dei conta que saí de lá e deixei a velhinha sozinha. Eu nem ao menos liguei pra polícia nem nada. Fiquei igual um idiota parado no canto do quarto. Eu nunca soube o que aconteceu com ela. Ninguém da vizinhança ficou sabendo também do fato. Fiquei péssimo por dias por causa disso. Além dos meus pais, eu nunca contei isso pra ninguém. Tinha vergonha do que as pessoas fossem achar. Acho que ainda tenho um pouco.

Ela me escutou com atenção. Estava tão vidrada que quase não piscava. Depois de um tempo, percebeu que eu tinha terminado de falar.

- Você não tem culpa. Ficou em choque com a situação.

- Mas eu deixei ela lá.

- E foi o que você conseguiu fazer. Não fez por mal ou por preocupação a si mesmo. Agiu por instinto.

- É, talvez possa ser isso. Mas tire a atenção de mim. Sua vez.

- Eu nunca contei isso pra ninguém. Nem mesmo pro diário que eu tinha na época. – ela começou a falar.

- Você tinha um diário? - perguntei incrédulo.

- Qual adolescente que nunca teve um diário? Enfim... eu tinha saído da escola e fui pro ponto de ônibus. Era de tarde, quase noite já. Eu tava com dezesseis anos na época. Enfim... teve uma hora que o ponto de ônibus ficou vazio por uns instantes e dois homens se aproximaram. Sentaram no canto e ficaram me encarando direto. Um deles começou a jogar aquelas cantadas inconvenientes, me chamar de linda e então foram descendo o nível até que se levantaram e sentaram um de cada lado, meio que me prendendo.

Nesse instante meu coração começou a bater forte.

- Começaram a passar a mão em mim. Tentei sair dali, mas eles me seguraram forte pelo braço. Eu, lógico, comecei um escândalo, só que eles taparam a minha boca e foram me arrastando pro mato que tinha atrás do ponto. Do nada, apareceram uns meninos e começaram a bater neles. Teve um que me pegou e me tirou dali. Tiago o nome dele. Foi muito gentil e me ajudou a ficar calma depois daquela situação. Ficou até meu ônibus chegar. Quando entrei vi os outros amigos dele chegando, mas não consegui ver direito quem eram.

Ela não se lembra do meu rosto, mas eu me lembro do rosto dela. Agora.

- E por que você nunca disse isso pra alguém?

- Eu fiquei com muito medo. Achei que fossem me colocar cara a cara com os caras para identificá-los. E se eles me marcassem e fossem atrás de mim ou da minha família? Preferi ficar quieta mesmo. A surra que eles levaram deve ter dado um jeito, espero.

Eu não conseguia dizer mais nada. Apenas fiquei encarando aquela mulher que estava diante de mim. Queria dizer que eu a ajudei. Que eu estava lá. Que sempre tentei achá-la para saber se estava bem, se precisava de algo. Não queria cometer o mesmo erro que cometi com a senhora. Tiago só sabia seu primeiro nome, mas não foi muito útil na busca por ela. Mas agora ela estava na minha frente. Era o momento que eu sempre esperei. Era agora ou nunca.

Ela percebeu que um silêncio estava se intrometendo em nossa conversa. Acho que ela deve ter se assustado com esse silêncio, pois eu parecia estar petrificado com uma cara nada agradável. Comecei a tentar voltar ao normal e dizer para ela quem eram os outros amigos que ela não viu. Mas quando ia deixar as palavras saírem, nosso silêncio foi jogado pra longe com a atendente no alto falante informando que alguns ônibus haviam chegado.

- Olha! Meu ônibus chegou. - ela disse animada.

- O quê?

- Ela acabou de anunciar meu ônibus. O último. Foi bom conversar com você. Pelo visto, eu ganhei com o maior segredo, não é? – e soltou um risinho que por sinal foi muito cativante.

Ela já estava quase saindo da sala de espera quando a chamei:

- Espera!

Ela se virou e ainda tinha aquele sorriso no rosto. Os olhos brilhavam. Sua fisionomia não parecia de quem estava pensando em voltar para o namorado babaca. Será que eu contava que era eu? O que aquilo poderia causar? Será que isso a deixaria mais assustada? Ou até mesmo envergonhada? Não! Eu ia falar. Precisava falar de tudo.

- Eu esqueci de te dar tchau. – ela ficou me olhando sem entender muito, mas ainda sorrindo. – Tchau!

E acenei. Ela também acenou e disse um tchau, agora rindo mesmo. E foi embora.

Que bananão eu fui. Ela estava ali, de frente pra mim. Eu tive a chance de falar e simplesmente a deixei ir. Se arrependimento matasse... Eu precisava fazer aquilo. Saí correndo da sala já com o discurso preparado, mas quando cheguei à plataforma, o ônibus já estava na saída. Pela segunda vez, perdi a chance.

Grande idiota eu sou!

Quando virei para voltar à sala de embarque, bem ali, atrás de mim, ela estava parada com aquele sorriso que tanto me cativara. Não tive mais dúvidas ou medo.

É agora!

4 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Omissão

Morei num condomínio em uma cidade do interior do Rio de Janeiro. Este caso me afetou bastante e até hoje não sei exatamente o que dizer....

A Observadora

Comments


RECEBA MEUS EMAILS

Obrigado pelo envio!

© 2035 por Coisas Encantadoras. Orgulhosamente criado com Wix.com

  • Instagram
  • LinkedIn
bottom of page